domingo, 14 de junho de 2009

O TAROL DA SALVAÇÃO
J. Norinaldo

O sr. Luis Defino, que se aposentara há algum tempo, ficara com um bom salário. Sonhara fazer muitas coisas quando aposentado, mas não fez nada. A vida mudou radicalmente, em casa o ostracismo levou seu Luis à depressão, vivia de mau humor o tempo todo, tentou arranjar um novo emprego mas não conseguiu e sua esposa começou a sofrer com o nervosismo do marido.
Luis não deixava sua mulher escutar o rádio, o que antes ela fazia todos os dias enquanto ele estava no trabalho… qualquer barulho irritava o homem, principalmente se fosse contínuo. D. Edna viu a sua casa virar um verdadeiro inferno com a presença agora constante do marido.
Ela também sonhara viajar e se divertir assim que este estivesse aposentado, no entanto, ainda não haviam saído de casa e ele já se aposentara há dois anos.
Um belo dia, uma família se mudou para a casa ao lado da de Luis. Era um casal jovem com apenas um filho de oito anos, uma linda criança que se chamava Gabriel.
No começo foi tudo normal, os vizinhos se cumprimentavam, mas Ricardo, o vizinho, já comentara com Selma sua esposa que achava o vizinho estranho, não sorria nunca e parecia estar sempre com raiva do mundo.
Nunca, porém houve nenhum incidente digno de nota entre os dois casais, até que chegou o natal, Luis não quis ir passar as festas na casa de parentes de D. Edna, de modo que ficaram os dois em casa, já que não tinham filhos.
Os vizinhos ainda os convidaram para ir a sua casa, mas Luis, alegando que o natal é uma festa para a família, não queria incomodar. O outro ainda insistiu, mas não teve jeito.
E foi depois deste natal que as coisas começaram a mudar entre os dois.
No dia seguinte ao natal, Gabriel, o filho do casal ganhou de presente do pai um pequeno taról, portanto, Luis foi acordado muito cedo no dia 25 pelo baralho do pequeno tocando seu instrumento: Tararará tarará tatá, tararará tarará tatá.
Luis acordou, sentou-se na cama, sua esposa ainda dormia, ele balançou a cabeça e disse em voz baixa: “Acabou-se o sossego, será que essas pessoas não conhecem o direito dos outros, o que diabo é isto agora?”
O barulho continuava o mesmo de sempre: Tararará tarará tatá, tararará tarará tatá… Aquilo foi levando seu Luis a loucura, esperava para ver se aquilo parava, mas nada. Levantou-se e deu uma olhada por cima do muro, Gabriel inocentemente tocava seu tarol muito feliz:
Tararará tarará tatá.
Aquele som entrava na cabeça do homem parecendo uma verdadeira tortura, Luis desceu do muro e falou muito alto: - “Será que esta tortura vai durar muito tempo?”
A mãe do menino ouviu e ficou preocupada, mesmo sem saber que o vizinho se referia ao seu filho, mesmo assim pegou o menino e o levou para um canto do quintal bem longe do vizinho, o menino continuou a tocar seu tarol.
Luis aguçava os ouvidos, ainda ouvia, mais fraco, mas ouvia, e a tortura continuava. Sua esposa acordara com seus gritos.
- O que está acontecendo? Que gritaria é esta?
- Um maldito tarol querendo me deixar louco, você não está ouvindo?
- Ora Luis, é apenas o menino do vizinho, deve ter ganhado de presente e está se divertindo, você nunca foi criança? deixe o pequeno brincar, que coisa!
- Não vou admitir que filho de ninguém me deixe louco, vou falar com os pais dele” - falava tão alto que a vizinha ouvia tudo, esta levou a mão à boca e disse consigo mesma: “Ai meu Deus, e agora, vou ter que tirar o brinquedo do Gabriel, não quero incômodo com os vizinhos”.
Bem que tentou convencer o menino, em vão, ora, ele ganhara o brinquedo não fazia muito, e já estava gostando muito dele. Quando o marido acordou, ela lhe contou tudo, este recomendou à esposa que levasse o menino para tocar seu instrumento na praça, também não queria brigas com o vizinho.
Selma levava o menino até a praça e ali ele tocava o seu tarol, como a praça não ficava longe, seu Luis ia para a janela e ficava tentando ouvir o barulho, olhava com ódio para a mãe e o menino, sua mulher notando aquilo disse:
- “Você deve estar ficando louco homem, sai daí, deixa de blasfemar contra uma criança, Deus pode te castigar” … e ouviu mais um monte de impropérios.
O certo é que Luis parou de cumprimentar os vizinhos, estes conscientes que não transgrediam nenhuma lei, continuaram sua vida normal, tinham esperança que logo o menino se fartasse do brinquedo, e ai daria sumiço nele, mas não aconteceu.
Gabriel cada vez mais gostava do seu tarol, para desespero do vizinho, que agora blasfemava a altos brados contra a criança. Sua esposa tapava os ouvidos para não escutar aquelas barbaridades.
Um belo dia seu Luis acordou e não ouviu o rufar do tarol… ficou esperando e nada!!!
O que houve? Será que enfim tomaram vergonha e deram sumiço naquela imundicie? – pensou. Que nada! Continuou pensando… daqui a pouco começa, e ficou com seu mau humor a espera.
- “Nada, já sei, não estão em casa, mas o alívio é só momentâneo, depois começa tudo novamente.”
No outro dia, nada de tarol, porém nem isto levava felicidade àquele homem, ele continuava pensando, mesmo assim levaram muito tempo, e eu sei que foi por implicância, por isto continuarei sem falar com eles, não gosto dessa família.
Certa noite Luis dormia tranqüilamente ao lado da esposa, de repente deu um pulo na cama, D. Edna acordou assustada e viu seu marido banhado de suor, parecia transtornado, ela ficou com muito medo e perguntou:
- O que houve? Você está bem? Por Deus me responde homem!!
Luis com a respiração alterada olhou para a esposa e perguntou:
- Você notou que o menino parou de tocar o tarol? O que será que aconteceu?
D. Edna então teve certeza que seu marido não estava nada bem, mas sentiu raiva e disse:
- Você endoidou de vez homem, vou ligar agora mesmo para o doutor Alberto, você infernizou a vida de todo mundo ultimamente por causa desse brinquedo, ofendeu as pessoas, brigou com o mundo, e agora vem no meio da noite me perguntar por este tarol, ora faça-me o favor. Não vá me dizer que está sentindo falta do barulho, porque ai, quem vai enlouquecer sou eu.
Desta vez D. Edna teve uma grata surpresa, quando olhou para o marido, viu uma coisa que já até havia esquecido, um lindo sorriso aflorava de seus lábios, ele tinha uma expressão de felicidade, ela não entendeu nada, pensou: - “Coitado pirou de vez, e agora o que faço?”
- “Vá dormir, minha querida” Há muitos anos ela não ouvia aquelas palavras. - Durma com Deus, amanhã você saberá o que houve, eu prometo, tenho certeza que a partir de hoje, minha vida será outra.” - beijou suavemente a testa da esposa e também se deitou, em seu rosto um belo sorriso, e uma lágrima lhe escorria dos olhos.
Luis não conseguiu mais dormir aquela noite, só que desta vez de tanta felicidade. D. Edna não conseguiu dormir, preocupada com o comportamento do marido, continuava pensando que endoidecera.
No outro dia, Luis saiu de casa bem cedo, sem dizer aonde ia, ela aproveitou e ligou para o médico da família e explicou tudo ao velho doutor. Este ficou de fazer uma visita ao casal naquele mesmo dia.
Por volta das onze horas Luis chegou em casa com 3 grandes pacotes, todos embrulhados para presente, mas disse que eram uma surpresa e cada vez mais a mulher acreditava na loucura do marido, já sentia até pena.
- “Bem minha querida, eu lhe disse ontem que minha vida iria mudar, que lhe contaria tudo, aguarde só mais um pouco e ficará sabendo de tudo. Primeiramente quero lhe dar este presente, espero que goste, vamos abra.”
D. Edna, perplexa, recebeu das mãos do marido aquela caixa e com mãos trêmulas começou a abri-la… sua surpresa foi imensa quando viu que se tratava de um lindíssimo rádio, o seu já estava muito velho.
Esqueceu a loucura do marido e correu para seus braços, este a recebeu afetuosamente lhe dando um beijo na boca. D. Edna não conseguiu segurar a emoção e começou a chorar.
- Vamos querida, ligue, agora pode ouvir o tempo que quiser, não está feliz?
- Muito, querido, você nem imagina, mas o que houve? Porque esta mudança?
- Já disse, tenha um pouco de paciência e logo saberá de tudo, disse ele sorrindo - coisa que não fazia há muito tempo.
Assim que o vizinho chegou do trabalho para o almoço, seu Luis apertou sua campainha, D. Selma veio atender e tomou um susto quando o viu.
“O que será agora meu Deus? Será que este homem não vai nos deixar em paz?.” Porém notou um sorriso no rosto do vizinho ao dizer:
- Bom dia, vizinha, eu poderia falar com vocês?
Nisto Ricardo apareceu, quando viu seu vizinho seu sangue ferveu nas veias, aquilo era demais!!! O que era agora? – pensou. E foi logo dizendo com voz áspera:
- Escute aqui, eu já tirei o brinquedo do meu filho que tanto lhe incomodava, o que quer agora? Que eu jogue também meu filho fora? Nem sequer ouvimos rádio aqui, eu comprei esta casa com muito sacrifício, não sou rico, nunca pensei ser um mau vizinho, portanto acho que o senhor tem exagerado em suas excentricidades, conheço os meus direitos, assim como meus deveres. O que deseja agora?
O homem ouviu tudo calado, depois deu um triste sorriso e disse:
- “Calma amigo, sei que vocês têm todos os motivos do mundo para não gostarem de mim, sempre fui muito egoísta e mau, mas agora vim aqui exatamente para pedir perdão pelas blasfêmias que disse contra seu filho, e lhe trazer um presente. Se conseguirem me perdoar eu lhes garanto que se assim desejarem, nunca mais lhes dirijo a palavra, porém o meu desejo é que sejamos grandes amigos.
Por favor, chamem o menino, quero lhe dar este presente, tenho certeza que vai adorar.”
Ricardo não entendia nada, olhava desconfiado para aquele pacote, depois do que ouvira aquele homem dizer do seu filho, aquilo bem que poderia ser uma bomba. Mesmo assim foi buscar seu filho, quando seu Luis viu o menino, o olhou com muita meiguice e disse:
- Olhe o que eu lhe trouxe de presente. Vamos abra e veja se gosta!!
O pai incentivou a criança a abrir o pacote, e quando Gabriel colocou os olhos no conteúdo, deu um grito de felicidade e seus olhos brilhavam como diamantes, Ricardo também se assustou, aquilo devia ter custado uma fortuna. E como soubera que o sonho do menino era um violino, será que seu filho pedira aquele presente, e não dissera nada aos pais.
- É para mim!!!!!!!! - gritava o menino - Que lindo!!! muito obrigado, olha mãe que lindo!!!
E retirou da caixa um belíssimo violino.
- Não podemos aceitar um presente tão caro, isto deve ter custado uma fortuna - disse o Ricardo.
- Não existe dinheiro que possa pagar pela felicidade de uma criança! O senhor não viu os olhinhos dele quando viu o violino? É seu, garoto e faço questão de lhe pagar aulas de música, aceita? - Bem e para provar que mudei, quero convida-los a jantar hoje conosco, aí ficarão sabendo de toda a história.
O casal mesmo diante de tanta surpresa, aceitou o convite.
Luis avisou a esposa, que com muita satisfação começou a preparar o jantar, nossa há quanto tempo não recebiam uma visita, e esta era muito especial, fez tudo com muito carinho e depois foi se arrumar para recebe-los.
Ricardo e família chegaram cedo, conversaram muito e em seguida foi servido o jantar, todos não cabiam de curiosidades para saber da novidade.
Após o jantar passaram a sala, e todos se acomodaram, só seu Luis ficou de pé.
- Atenção: Agora ficarão sabendo que não fiquei louco como chegou a pensar minha mulher, vou contar-lhes com detalhes o que me aconteceu:
- Eu tive um sonho. Eu estava na França, era há muitos anos atrás, me encontrava num tribunal, diante um juiz, cometera um crime muito grave, ou vários crimes. Minha primeira surpresa foi quando olhei para o juiz, este, mesmo de peruca e com aquelas roupas engraçadas, não era outro senão eu mesmo, vi quando ele se levantou e apontando para mim disse:
- Este homem cometeu os piores crimes, Não gosta da vida, não gosta de música e o pior, blasfemou contra crianças. Portanto eu o condeno a morte na guilhotina, será executado assim que o tarol parar de tocar. E saiu, eu então fui levado para um grande pátio, muita gente ali para assistir a minha execução, vi a guilhotina, minhas pernas não me obedeciam mais, fui arrastado até ela.
Ali colocaram minha cabeça numa espécie de buraco, vi a lâmina presa acima… vi um cesto em frente a mim. Comecei a suar muito e a pensar na minha vida, tinha pouco tempo para me arrepender dos meus pecados.
Logo trouxeram um menino com um tarol e pensei: maldito tarol, nem nessa hora me livro dele.
Foi dado um sinal e aquele menino começou a tocar: Tararará tarará tatá, tarará tarará tatá, pensei: Não tenho saída, pelo menos não vai demorar, pois este moleque logo parará e terminará tudo para mim, me lembrei com saudades da minha mulher, senti uma grande tristeza, não conseguia vê-la e isto me causava muita dor. O menino continuava tocando, na minha insanidade eu ainda pensava, “ele quer me torturar”, sabe que odeio este barulho, vai demorar bastante, de repente pára e a lâmina desce, um calafrio me percorreu todo o corpo. A agonia era grande...
O tempo passava e nada do menino parar de tocar, olhei para ele, vi um lindo olhar, ele continuava firme, o tempo foi passando, eu sabia que aquela criança mesmo que com muito esforço não agüentaria mais por muito tempo, a platéia começava a se irritar, vaiava o menino, queriam que parasse, ele continuava e agora aquele tararará tarará tatá que tanto me irritara, agora era uma música divina aos meus ouvidos. Olhei mais uma vez para o menino, este parecia cambalear, suava muito, demonstrava um grande cansaço, pedi a Deus que lhes desse força, jurei que mudaria minha vida, passaria a ver as crianças como devem ser vistas, pedi para que não parasse, que ironia, eu que tantas vezes blasfemara contra meu vizinho, agora implorava para que aquela criança continuasse tocando… E ele continuou, a platéia começou a se retirar irritada, aquela linda criança não queria que eu morresse, comecei a sentir isto, eu amava aquele menino.
Quase ninguém mais estava na praça, começava a escurecer.
De repente aquele juiz que me causara tanto espanto, ordenou que travassem a guilhotina e me soltassem, e que um soldado destruísse o tarol do menino.
Para minha maior felicidade eu me senti livre, fora perdoado, corri então para o menino, me ajoelhei a sua frente e lhe agradeci por ter me salvo a vida, depois olhei para o seu tarol, ali no chão destruído. Disse-lhe:
- Sinto muito pelo seu tarol amigo, e ele me olhou com toda sua inocência e disse:
- Não faz mal, o importante é que está vivo, eu não gostava mesmo desse tarol.
- E porque não gostava dele? Eu gosto, pois foi com ele que me salvou da guilhotina…
- É que o barulho dele irritava meu vizinho, o seu Luis, e ele falava muitas coisas feias para mim, queria tanto que ele gostasse de mim, mas o tarol estragou tudo. E na verdade eu queria mesmo um violino.
- Foi quando eu descobri que aquele que me salvara era o Gabriel, eu acordei apavorado, como eu não o reconhecera, claro nunca procurei olhar com carinho para esta linda criança. Ai está minha história, por causa desse meu sonho, quero mudar minha vida, amar as crianças e ver a vida como ela merece ser vista. Minha felicidade não estará completa, se vocês não me perdoarem de coração e se tornarem meus amigos para sempre!!!
- Quando terminou sua narrativa todos ali choravam, Luis aproveitou para mais uma vez abraçar Gabriel com muito carinho e para sua felicidade ganhou um beijo do garoto.
A vida, agora bem melhor para aqueles vizinhos, continuava, mas um dia Ricardo teve que se mudar novamente, fora transferido para outro estado, a separação não foi fácil para o Luis, mas nada podiam fazer, nesta época Gabriel estava com onze anos.
Cinco anos depois, Luis ia completar 65 anos, costumava acordar cedo, às sete horas já estava fora da cama, no dia do seu aniversário, eram seis horas da manhã, Luis foi acordado pelo toque de um tarol, parecia dentro da sua casa…
Tararará tarara tatá, tararará tarara tatá.
Ele deu um pulo da cama, D. Edna sabia de tudo.
- Querida, está ouvindo isto?? parece aqui em casa, ouça!!!
D. Edna fingindo não ouvir nada disse:
- Não estou ouvindo nada, do que está falando?
De repente o tarol parou de tocar, e seu Luis ouviu o mais lindo parabéns, tocado com perfeição por um violino, ele não tinha mais dúvidas, pulou da cima e correu em direção a música, chagou a sala e viu aquele belo rapaz, vestido de soldado francês da época do sonho tocando seu violino com perfeição. Por pouco o coração do homem não para de tanta emoção. Depois ainda ouviu sua música preferida tocada com muito amor e capricho “Fascinação” Gabriel sabia que ele adorava.
Seus pais também estavam ali, vieram todos ao aniversário do velho amigo. Após a grande emoção, seu Luis ordenou que todas as crianças do bairro fossem convidas para a festa, não precisava, elas já haviam sido convidadas por D. Edna, a casa foi enfeitada com milhares de balões e mais parecia um aniversário de criança, e talvez fosse mesmo….
A casa estava repleta de crianças e seus pais, quando seu Luis pediu atenção de todos e disse que voltaria logo com um presente que ganhara, foi ao seu quarto e voltou com o terceiro pacote que trouxera aquele feliz dia após o sonho.
Abriu-o, e dali tirou um tarol, pendurou no pescoço e saiu para o quintal tocando, com um chapéu de papel colorido na cabeça.
- Tarará tara tatá, tararará, tarará tatá…
Logo a garotada o seguia, um verdadeiro batalhão de crianças soprando língua de sogra na maior barulheira, ninguém tinha dúvida de que aquele era o homem mais feliz do mundo naquele momento.
O MISTÉRIO DOS AZULEJOS
José Norinaldo Tavares

Na cidade de Itaqui no interior gaúcho, vivia a família que originou esta história.
Eram apenas três pessoas: O pai, seu Carlos Aquino Fontoura, sua esposa D. Almerinda Fontoura e o pequeno Michel, com apenas sete anos.
Seu Carlos trabalhava numa fazenda e só vinha em casa nos fins de semana, e nem sempre. D. Almerinda era lavadeira, estava sempre nas pedras do Rio Uruguai com enormes trouxas de roupas. Enquanto isto, Michel brincava na água sempre vigiado pela mãe.
Michel era um garoto muito esperto, muito curioso, estava sempre indagando sobre tudo… iria para escola naquele ano.
Havia nesta cidade uma família muito ilustre. Eram os Ferrantes e Oliveira, moravam numa casa muito grande, uma construção antiga e sem nenhuma beleza. Era um prédio retangular, com portas muito grandes e altas, tendo uma espécie de arco na parte superior.
D. Almerinda lavava para esta família. Sempre que ia buscar a roupa levava consigo o pequeno Michel.
A primeira vez que o garoto entrou naquela casa, ficou encantado com os azulejos da cozinha! Esta era uma peça muito ampla como quase tudo naquela casa, o menino não desgrudava os olhinhos da parede revestida até o teto com um lindo azulejo com cores azuis e amarelo ouro, era realmente muito bonito.
Um dia comentou com sua mãe que achava aquela parede muito bonita, que gostava de ir àquela casa, até porque as pessoas ali o tratavam com muito carinho, sempre ganhava alguma coisa, quando não era um brinquedo, era um pedaço de torta, um biscoito, mas o que o encantava mesmo eram os azulejos.
Às vezes perdiam Michel de vista e iam encontrá-lo sempre olhando para os azulejos da cozinha.
Certo dia D. Almerinda conversava com a patroa, quando lhe falou do interesse do garoto pelos seus azulejos, D. Alonia, pois este era o nome da matriarca da família olhou para Michel e disse:
-Vejo que já tem muito bom gosto meu rapaz, pois este azulejo é realmente muito raro, veio da França, foi desenhado por um verdadeiro artista, e também custou uma fortuna ao meu avô.
Outra coisa que chamava atenção naquela casa, é que não havia jovens ali, só pessoas já com certa idade, médicos, advogados, um juiz e um militar de alta patente. Ninguém ali tinha menos de 50 anos.
O tempo foi passando, Michel continuou freqüentando aquela casa, e cada vez mais se apegava àquelas paredes, sempre que chegava com sua mãe, mesmo antes de lhe servirem um lanche, D Alonia o convidava a ir até a cozinha para admirar suas paredes, ela perguntava rindo:
- E ai senhor, estão limpos seus azulejos? - Ele sorria e ficava ali de olhos grudados na parede.
- Que coisa engraçada! - Dizia ela para a mãe do menino. - Poucas pessoas têm a sensibilidade de chegar aqui e olhar da maneira como esse menino olha esta parede, estranho, não acha?
D. Almerinda acreditava que aquilo se devia ao fato do menino nunca ter visto azulejos em sua casa, quem sabe não é isto?
Mas não era. Isto ficou provado mais tarde. Três anos depois, o pai de Michel recebia uma ótima proposta para trabalhar em Mato Grosso. Aceitou e se mudaram da cidade.
Nesta época Michel estava com 10 anos, quando foram se despedir dos Ferrantes o menino teve que ser puxado da cozinha, pois parecia ser atraído por uma força estranha. Michel queria gravar fundo em sua memória a beleza dos azulejos.
O menino cresceu, seu pai melhorou de situação, ele pôde estudar, se formou, mas nunca esqueceu sua antiga paixão. Depois de adulto achou que não era certo da cabeça por não esquecer uma coisa de criança, mas a verdade é que aquilo virou uma verdadeira obsessão para o jovem. Nunca comentava nada com ninguém, mas estava sempre testando a mente para ver se ainda se lembrava da beleza daquelas peças.
Michel ganhara muito dinheiro junto com o pai plantando soja. Era agora um homem rico, estava com 30 anos e continuava solteiro. Sempre que viajava a grandes cidades como São Paulo, Michel percorria todas as grandes casas de materiais de construção, aquilo era inevitável.
Quando o rapaz tinha um tempo disponível, quase que automaticamente estava à procura desse tipo de comércio, procurava em todas as lojas mas nada de encontrar azulejos iguais, ou pelo menos parecidos. Estaria ficando louco? Pensava. Aquilo não poderia ser normal.
Preocupado, um dia procurou falar com um amigo que era psicanalista, este lhe falou em termos médicos ele quase não entendeu nada, porém ficou mais aliviado quando o amigo lhe disse que não havia nada de errado com sua cabeça.
Um belo dia Michel viu apavorado que já não tinha tanta certeza de como eram seus azulejos, puxou pela memória e nada. Aquilo para ele era terrível. Resolveu então fazer uma viagem ao Rio Grande do Sul. Queria visitar a cidade onde nascera seus pais não quiseram ir com ele de modo que uma semana depois o rapaz pegava a estrada.
Michel chegou a Itaqui de madrugada, conseguiu um hotel e dormiu até tarde do outro dia. Fazia muito frio, quando o rapaz acordou. Viu que caía uma fina chuva.
Uma hora depois ele pedia para que lhe chamassem um táxi, e saia dali dando ao motorista o endereço do solar dos Ferrantes.
Quando o carro parou no local indicado, a primeira decepção quase faz o moço chorar, pois a grande construção agora não passava de uma tapera… até pequenas árvores nasciam dentro da casa! As grandes salas eram ocupadas por alguns mendigos, muito lixo amontoado por todo lado…
O motorista, um homem já bem idoso, perguntou:
- Está certo seu endereço moço?
- Sim! - respondeu o outro - É aqui mesmo. O senhor conheceu a família que morava aqui?
- Bem, aqui morou a Família Ferrantes, mas isto há muito tempo… todos já morreram depois isto virou um empório, e tempos depois foi uma pensão, até que ficou neste estado.
- O senhor sabe a quem pertence agora? - perguntou o jovem.
- Sei! É uma firma de Porto Alegre, só não sei o nome. Ouvi por acaso uma conversa dias atrás no cartório.
- Bem eu vou dar uma olhada ai dentro!
O motorista vendo as roupas do visitante, de terno e um belo, sobretudo azul, disse:
- Moço isto ai está uma verdadeira latrina, como pensa entrar num lugar assim?
E desceu primeiro fazendo uma inspeção rápida, voltou dizendo:
- Não dá mesmo, não vai poder entrar ai.
Michel vira que quatro homens muito mal vestidos bebiam cachaça na sala da casa e pensou: - “Como pode?!” - Lembrava-se que estivera poucas vezes ali.
Via sempre um homem velho, muito branco, usava suspensórios que estava sempre sentado em uma poltrona muito bonita, geralmente lendo um jornal ou um livro, agora o que se via era umidade e mofo por todo lado, além de muita sujeira pelo chão.
- E se eu pagasse a esses homens para fazerem uma limpeza bem feita, será que eles fariam? - perguntou Michel ao motorista.
- Com certeza, quer posso falar com eles, e o senhor volta daqui a algum tempo.
- Quero sim, pode fazer isto?
- Pode deixar comigo. - Antes, porém o homem perguntou intrigado: - O senhor pertence àquela família?
- Não senhor, é uma longa e estranha história, se quiser eu lhe conto enquanto visitamos outros lugares.
- Claro que quero, se o senhor não se incomodar.
E foi falar com os homens que bebiam no gargalho de um litro de pinga, quando voltou disse: - Tudo certo! vão começar imediatamente! farão uma limpeza geral, vamos ter que lhes comprar umas vassouras, um forte desinfetante e mais algumas coisas, aqui perto há um mercado onde podemos fazer isto.
- Foram, compraram tudoe voltaram. A curiosidade de Michel não o deixou esperar. Pediu para que um dos homens desse uma olhada na cozinha para verificar se ainda estavam ali os azulejos, o homem sumiu no meio da sujeira, e o coração do rapaz mudou o compasso. Minutos depois o homem voltava anunciando:
- Ainda tem bastante azulejo moço, muito bonito por sinal.
A alegria voltou ao rosto do homem. Saíram dali e Michel até se assustou por não ter procurado primeiro a casinha onde moravam, deu o endereço e quando lá chegaram nova surpresa, lá estava ela, agora mais bem cuidada, bem pintada, um belo jardim na frente, e do lado um gramado muito bem aparado…
- Era aqui que eu morava, acho que nasci nesta casa! - e antes que o motorista lhe perguntasse por que então o interesse no velho casarão, Michel começou a lhe contar sua história. No final o homem não entendeu nada.
Voltaram ao velho solar três horas depois e os bêbados tinham feito uma bela faxina, estava tudo lavado e até o fedor de fezes havia sumido. Michel pediu para entrar sozinho na cozinha da velha casa, tinha medo de começar a chorar na frente daqueles desconhecidos. E foi o que aconteceu. Com o coração aos pulos ele ultrapassou o umbral da porta da cozinha.
Lá estavam eles, apenas os mais altos restavam, mas estavam intactos, apesar de muito sujos.
Michel viu de repente em sua imaginação, D. Alonia vestindo seu vestido longo, azul muito claro, com uma terrina de porcelana muito fina atravessando aquele local, ela sorria para ele, não conseguiu se conter e começou a chorar. Não sabia quanto tempo ficou ali com seus pensamentos, quando voltou os homens conversavam lá fora, perguntou para os homens quanto lhes devia, eles deram o preço e Michel lhes deu muito mais.
Virou-se para o motorista dizendo: - Vamos ver se descobrimos a quem pertence isto aqui, gostaria de comprar os azulejos que sobraram na cozinha.
- Amigo, poderia até ficar rodando com o senhor por ai, mas não vamos encontrar essa pessoa, portanto se o senhor quiser, posso me encarregar de arranjar alguém que lhe tire esses azulejos, com certeza ninguém vai reclamar por eles, enquanto isto o senhor pode fazer o que bem quiser o que acha?
Após recomendar o maior carinho com o trabalho, Michel concordou com o homem que disse se chamar Romeu, e pediu que o deixasse num restaurante. Como era muito cedo para o almoço, mandou que o motorista encomendasse o trabalho e voltasse ali para almoçar com ele.
Michel ficou muito feliz mesmo foi quando o homem contratado por Romeu se apresentou com uma caixa lhe trazendo 296 azulejos intactos, já limpos parecendo novos. O motorista do táxi notou a emoção daquele homem quando este segurou uma das peças, novamente lágrimas lhes desciam pela face.
Antes de regressar a sua cidade, Michel foi ao cemitério da cidade e conseguiu encontrar o túmulo daquela nobre família, viu as fotos amareladas. D. Alonia estava sorrindo! Era bem mais nova ali… como era bela!... mais uma vez não segurou as lágrimas.
Michel deixou Itaqui com seu tesouro, deixando para trás uma história que era contada pelo taxista a todos que encontrava, era incrível aquela história. Que estava apenas começando.
De posse dos azulejos, Michel começou uma verdadeira pesquisa para descobrir tudo sobre eles, agora sabia que não era louco, algo muito forte o atraía naquelas pequenas peças, não era só a beleza dos mesmos. Ele não sabia o que era, mas iria descobrir.
Numa viagem a São Paulo, levou um dos tais azulejos, colheu todas as informações possíveis, terminou num antiquário. Este, um homem muito idoso, examinou a peça e depois de um pesado silencio levantou os olhos e disse:
- Muito antigo moço, deve ter sido fabricado no século 18, o senhor já verificou se não há nenhuma inscrição atrás, sempre tem alguma coisa, muitas vezes a olho nu não se nota, mas um exame mais apurado nos revela até quem os fabricou.
Michel não havia pensado nisto, procurou saber quem poderia fazer isto e lhe indicaram o laboratório de uma grande faculdade.
Ele não perdeu tempo, e conseguiu o que queria, duas horas depois tinha o resultado da pesquisa: - Marselha, França 1834 e ainda o nome da empresa fabricante.
Michel não ficava o tempo todo procurando pistas sobre seus azulejos, porém vale dizer que qualquer tempo que tinha disponível, ou qualquer assunto que se relacionasse com o assunto, ele ia até o fim.
Através da internet começou mais uma procura, entrava em sites da França à procura da tal fábrica de azulejos, mas nada! Tempos depois conheceu um amigo virtual que prometeu ajudá-lo.
Consultou um pesquisador e descobriu um museu em Paris onde talvez o amigo elucidasse suas dúvidas. Michel, mais uma vez, não teve dúvidas. Assim que terminasse a colheita iria fazer uma viagem a Europa, aliás, um antigo sonho seu.
Meses depois o rapaz embarcava para a França, fizera um curso intensivo de francês. Chegou e ficou maravilhado com a cidade luz. Dois dias depois, após visitar o Louvre e enfim ver de perto outro sonho seu a “Mona Lisa” começou novamente sua penitência… à procura que já durava anos.
Procurou o tal museu que seu amigo informara e o encontrou. Milhares de azulejos… inclusive o seu!
Foi para uma biblioteca e ali descobriu quase tudo o que queria.
O artista que desenhara aquela peça era também o proprietário da fabrica, ali dizia inclusive que faliu por não modernizar seu produto, que por muitos anos produziu em sua fábrica praticamente aquele azulejo. Parecia uma paixão.
Descobriu também que havia pessoas daquela família que residiam em Marselha. Foi mais uma longa viagem, mas ele não se abateu, três dias depois voava para a cidade tão antiga.
Ai sua procura foi mais fácil, a família era muito conhecida na cidade, Michel não teve problemas para encontrá-la, era a família Girard Gospin.
Parte dessa família morava em uma quinta fora da cidade, porém não muito longe.
Michel alugou um carro e foi pedindo informações até que encontrou o local, muito bonito por sinal, na margem de um rio. Havia ali vários bosques muito verdes e muitas plantações que ele desconhecia, depois ficou sabendo que eram beterrabas, nunca vira tantas.
Chegou à casa indicada. Era muito grande, praticamente toda de pedras, uma espécie de chácara em nossa terra porém muito bonita. Digna de um cartão postal.
Não parecia haver alguém em casa, Michel bateu palmas, chamou e nada, ficou por ali admirando a beleza do lugar e esperando. Um cachorro muito grande latiu e apareceu… ainda bem que não era bravo.
Enquanto não aparecia ninguém, tentava fazer amizade com o animal tentando lhe descobrir a raça, no final achou que era vira-lata francês.
Menos de meia hora viu um carro que se aproximava pela estrada por onde viera, veio direto até a casa, parou e dele desceu uma moça, muito bonita: Alta, cabelos longos, vestia uma roupa grossa, pois fazia muito frio, usava luvas e botas de cano alto.
- Bom dia! - cumprimentou sorridente - Em que posso ajudá-lo? espero que não esteja esperando há muito tempo. - disse ela com bastante simpatia.
O rapaz respondeu o cumprimentou e também sorrindo lhe disse que tinha vindo de muito longe, para reclamar por esperar alguns minutos. E ainda fizera amizade com o cachorro.
- De onde veio? - perguntou ela sorrindo e mostrando uma perfeita dentadura, além de um belo sorriso.
- Do Brasil - respondeu o rapaz. A moça que se apresentou com o nome de Anne Marie fez um gesto de espanto, e depois perguntou o que fazia tão longe do seu país.
Convidou Michel a entrar, dizendo que logo seus parentes estariam ali.
Michel entrou e sentou-se, a sala era ampla e muito bem decorada, mas o que mais lhe chamou a atenção foram os retratos na parede, a maioria óleos antigos e muito bem pintados.
A moça sentou-se a sua frente e começaram a conversar, Michel foi direto ao assunto que o levara até ali. Contou toda história desde o tempo de menino, sua paixão à primeira vista pelos azulejos, depois que aquilo jamais lhe saíra da mente. A moça ouvia a tudo com muita atenção.
Depois Michel retirou de uma pasta um exemplar e passou as mãos dela, esta olhou carinhosamente para ela e disse sorrindo:
- É! isto aqui foi desenhado e fabricado pelo meu bisavô, temos aqui um verdadeiro museu dessa história, minha família já não fabrica mais nada há muito tempo, hoje não somos mais ricos, eu sou professora e moro com meu pai, minha mãe e uma tia, mas não nos queixamos de nada.
Depois de ouvir a história Anne se levantou e apontando um grande quadro pintado a óleo, disse:
- Eis aqui quem o senhor procura! - Michel deu um salto da poltrona, e nem diante da Mona Lisa se emocionou tanto. Ficou um tempão ali parado sem dizer nada, olhos fixos naquele homem… parecia conhecê-lo, mas não sabia de onde, e é claro que nunca o tinha visto, mas tinha essa nítida impressão.
- Como era seu nome?
- Jean Pierre Gospin! - o nome sim, esse não lhe representou nenhum sentimento.
Duas horas de conversa e Anne estava realmente espantada com a história do rapaz, pois segundo ele mesmo, não teria nenhum lucro com todo aquele trabalho, sua única intenção era descobrir a atração que tinha por tudo aquilo.
Chegaram às outras pessoas da casa, Michel foi apresentado, a moça contou aos parentes de onde ele tinha vindo e com que interesse como estava na hora do almoço foi convidado a almoçar com a família, não pôde recusar e após o almoço, a moça o levou a uma espécie de sótão que havia na casa, com muitas prateleiras e velhos baús.
Começava a nascer entre os dois uma gostosa intimidade, Michel começou a se sentir muito bem ao lado daquela linda moça.
Começaram suas pesquisas, velhos papéis, esboços, desenhos, anotações, e foi justamente quando a moça lhe mostrou um velho e amarelado papel escrito pelo bisavô que Michel deu um verdadeiro grito: Em português ele disse: - Meu Deus!!!! - a moça se assustou e sem entender nada perguntou – O que foi? você está bem?
O rapaz muito pálido, não conseguia falar. A moça então gritou para a mãe que subisse e levasse um copo com água, pois pelo jeito o rapaz não se sentia bem.
D. Catherine correu assustada, com a água, assim que ele a tomou, ainda levou alguns segundos para recuperar parecendo em estado de choque, o pai da moça também correu ao local, falavam todos ao mesmo tempo tentando chamar a atenção do rapaz.
Minutos depois o rapaz ainda muito pálido e tremulo conseguiu dizer: - Não pode ser! Eu estou ficando louco, agora sim, acredito nisto! não pode ser!!!
Mas não dizia o que é que não podia ser! Os outros, apreensivos, insistiam: - O que não pode ser amigo? O quê???
Com uma expressão totalmente estranha no rosto Michel apontou o papel em cima da mesa e gritou:
- Esta é a minha rubrica, tenho certeza disto, quando voltarmos ao Brasil eu lhe mostro, todos os papéis rubricados por mim. Não pode ser verdade! Não pode!!
A moça mais espantada ainda franziu a testa perguntando: - O senhor disse “quando voltarmos” ao Brasil? E olhava para mim… não vou para o Brasil amigo, apesar de ter muita vontade de conhecer seu país.
- Não sei por que disse isto, desculpe, mas saiu sem eu querer.
Viram que tinham que tirar o rapaz dali precisava se acalmar. Se necessário até chamar um médico
O que aquela família não sabia, é que tudo mudaria dali para frente, pois como Michel não tinha data para voltar a sua terra, foi ficando e sempre junto da moça, o certo é que nasceu entre eles algo muito bom, que logo descobriram que o nome era amor.
Pode parecer fantasia, mas dois meses depois Anne Marie embarcava para o Brasil para conhecer os pais do seu namorado, adorou o Brasil e os pais do rapaz. Assim que chegaram a sua casa, e como o rapaz fizera questão de trazer o papel que quase o matara de susto, ai foi a vez da bela francesa ficar sem fala por longo período, quando viu as duas rubricas lado a lado. Não havia dúvidas era a mesma.
Michel e Anne Marie se casavam nove meses depois, tinham certeza que se amavam. Para surpresa do rapaz, sua esposa lhe deu uma agradável surpresa ao pedir para passar a lua de mel em Itaqui, origem de tudo, se apaixonou pela cidade e ali quis morar.
Michel comprou o velho solar, o reformou e os azulejos voltaram ao seu antigo lugar para sua total felicidade.
Para as famílias ficou uma história de amor muito linda e para o rapaz o prémio pela sua persistência em resolver aquele dilema.
Fica-nos uma dúvida: Apenas uma grande coincidência, ou algo mais profundo por trás de tudo isto?
Depois do casamento acabou-se a obsessão do rapaz pelos azulejos, continuava agora apenas os achando muito bonitos, o que era totalmente normal.
Tempos depois dormia tranqüilamente quando teve um sonho: Era um garoto novamente e brincava com outro menino, este usava uma boina muito grande e caída para um lado. Brincavam animadamente em um belo jardim, quando ouviu a mãe do colega gritar:
- Vallery onde está você? Tudo isto em francês, e o garoto respondeu:
- Estou aqui no jardim mamãe, brincando com Jean Pierre Gospin.
Para Michel, isto elucidava tudo.
A Fonte da Perfeição.


A FONTE DA PERFEIÇÃO
J. Norinaldo. Conto.

Abel era um homem inconformado com a vida. Achava-se feio e pouco inteligente, por isso gastava a maior parte do seu tempo pensando porque tantas pessoas se sobressaiam pela sua beleza, outros, não tão belos, pela sua inteligência, e porque ele nascera tão comum. Como gostaria de ser perfeito. Quando passava pela rua somente as poucas pessoas que o conheciam o cumprimentavam, e ele sabia que aquilo era um gesto mecânico, não havia satisfação, empolgação ao faze-lo. Enquanto que, por outro lado, existiam pessoas que viviam a milhares de quilômetros da sua cidade, que jamais viriam até ali e, no entanto, eram conhecidas e admiradas por todos.
Assim vivia Abel, sempre pensando na perfeição, na beleza, na fama. Em riqueza não pensava muito, mesmo porque sabia que, se fosse perfeito, esta acabaria sendo incluída.
Tinha 30 anos, não era pobre, mas também não era rico, enfim, não podia se queixar. Continuava solteiro, talvez esperando encontrar a perfeição para depois decidir casar. Não era bonito, mas também nunca assustara ninguém, e por muitas vezes notou que havia garotas na sua cidade interessadas nele, porém ele não lhes dava chance. Sonhava com a perfeição.
Tinha poucos amigos, pois ninguém agüentava por muito tempo suas lamentações por não ser bonito e perfeito.
Um dia Abel saiu de sua casa e resolveu caminhar até onde pudesse. Pegou uma estrada de chão e foi, perdido em seus pensamentos (que quase sempre eram os mesmos), seguindo com um alforge com algum suprimento para sua viagem.
Caminhou por três dias, até que chegou a um lugar muito bonito, onde tudo era verde e grandes plantações se perdiam no horizonte. Ele admirava tudo e pensava: isto sim é perfeito! A natureza é perfeita! Tudo é perfeito, menos eu.
Estava cansado e com muito sono. Parecia dormir andando.
Numa curva da estrada, Abel viu uma frondosa árvore e que junto a ela havia alguém sentado. Apressou o passo, pois já estava há muito na estrada sem ter com quem conversar.
Foi se aproximando e quando pode distinguir bem de quem se tratava, viu que era um velho, muito velho, cabelos totalmente brancos e com uma longa barba também muito branca. Que fazia um homem naquela idade sozinho pela estrada? - pensou. Chegou mais perto e o saudou com um "boa tarde" (falou bem alto, pois pensou já dever ser surdo). O homem levantou os olhos, olhou para ele e respondeu com voz firme:
- Boa tarde, não quer sentar-se e descansar um pouco, à sombra? Aqui está uma delicia.
Abel sentou-se em uma pedra e começaram a conversar. O homem velho perguntou qual era o destino do rapaz, e este lhe respondeu que não tinha destino certo, que estava apenas caminhando sem rumo.
- Mas, sempre estamos buscando algo na vida. O que, na verdade, você procura meu jovem?
Abel teve então a chance de falar do seu assunto favorito. Disse ao homem que não se considerava bonito nem inteligente, que nunca se sobressaíra em nada e que, portanto, não era perfeito. Isto era o que buscava, encontrar a perfeição.
- Então, meu caro jovem, o destino guiou seus passos ao lugar certo. Posso ajudá-lo. Conheço o que você está procurando.
- Como assim? - surpreendeu-se Abel - o senhor sabe como eu posso encontrar a perfeição?
- Exatamente. Posso lhe indicar o caminho, onde você pode se tornar perfeito, como sempre sonhou. Mas, tem uma condição.
Abel olhou incrédulo para o velho e pensou: _ Ora, se soubesse realmente onde buscar a perfeição, seria ele um velho já no fim da vida?
Não acreditava numa só palavra do velho, mas mesmo assim prosseguiu com a conversa.
- E qual seria essa condição? - perguntou, fingindo interesse.
- Terá que ensinar depois esse caminho a todas as pessoas que realmente precisam da perfeição.
- Tudo bem. Eu aceito. Ensine-me o caminho e diga o que terei que fazer. Fica muito longe daqui? - perguntou.
- Não fica muito longe. Existem grandes atalhos por onde você logo chegará.
Abel pensou consigo mesmo: estou caminhando sem rumo, não me custa nada seguir a loucura desse velho, que deve ser caduco.
O velho lhe indicou o caminho a seguir, lhe deu algumas referencias e se despediu do rapaz, seguindo seu caminho. Abel se espantou com a firmeza dos seus passos.
Partiu, então, em busca da tão desejada perfeição e, em menos de seis horas de caminhada, encontrou a primeira referência dada pelo velho. Animado, prosseguiu sem sentir cansaço mais algumas léguas e chegou ao local indicado. Havia um grande portão de pedras (muito estranho àquela construção). Ao lado viu uma pequena guarita e um homem que parecia montar guarda ali.
Aproximou-se, deu boa tarde e explicou o que procurava. O homem, calmamente, lhe respondeu:
- Está no lugar certo amigo. Entre e logo à frente o receberão.
Completamente atônito, o rapaz seguiu por um estreito caminho, avistou uma casa de pedra e para lá se dirigiu; foi recebido por um senhor muito simpático, que o convidou a entrar e, após sentar, Abel contou como chegara até ali.
Foi informado que não precisava pagar absolutamente nada, teria apenas que ter fé e se banhar numa fonte ali existente.
Achou tudo muito fácil para ser verdade, mas se não cobravam nada, não podia ser mais um caso de charlatanice.
O homem, que se apresentou com o nome de João ao recebê-lo, bateu palmas e apareceu uma jovem a quem chamava de Raquel.
- Leve o visitante até a fonte - ordenou.
A mulher, sem dizer nada, apontou o caminho a ser seguido e saiu na frente.
Abel a seguiu com o coração aos pulos. Ele não cabia de felicidade, pois pelo jeito o velho estava certo e em fim, ele iria ser uma pessoa perfeita, conhecida e admirada por todos.
Caminharam alguns minutos por uma estradinha muito estreita, atravessaram um pequeno e lindo bosque, cheio de flores e pássaros, mas Abel não via nada, sua preocupação era outra.
Chegaram finalmente à fonte e Raquel se virou para ele dizendo:
- Pronto, chegamos. O que tem que fazer agora é entrar na fila e aguardar sua vez. Não tem mistério, quando chegar sua vez é só parar embaixo da fonte e, enquanto se banhar, o senhor deve pedir para ficar perfeito, pela Graça de Deus.
Dizendo isto a mulher voltou pelo mesmo caminho.
Abel então viu que uma grande fila se formava até a fonte, que era muito bonita, de água que jorrava de uma grande pedra escura formava a figura de espectro que não conseguiu identificar. Quando viu as pessoas que formavam aquela fila tomou o maior susto. Uma mulher tinha nos braços uma criança com a cabeça bem maior que o corpo. Que coisa horrível! Seguindo a fila, ele viu um homem com uma ferida que já lhe comera a metade do rosto e só tinha um olho. Mais na frente, uma moça não tinha braços nem pernas.
A cada passo que Abel dava mais apavorado ficava. Viu uma moça que, olhando por trás parecia perfeito, um corpo muito bonito, porém quando chegou a sua frente, quase caiu de costas: a moça só tinha um olho e um buraco no lugar do nariz. Algumas pessoas choravam muito ou gemiam alto.
Abel pegou o caminho de volta e se dirigiu novamente para a casa da trilha e lá encontrou João e Raquel, que atendiam mais pessoas sofredoras. Ele aguardou e quando estes puderem falar, João perguntou:
- Mas, foi tão rápido, o que houve?
Abel então olhou para o homem e disse:
- Meu amigo, eu não preciso daquela fonte. Fui egoísta o tempo todo comigo mesmo, pois nunca me preocupei com os problemas do meu próximo; a minha vaidade e egoísmo nunca me deixaram ver que existem pessoas com problemas bem maiores e que se não fosse meu egoísmo, eu poderia me sobressair como sempre sonhei ajudando essas pessoas - disse revoltado, continuando em seguida - Não me banhei na fonte, porque descobri que sou perfeito. Eu sempre fui fisicamente perfeito, minha mente é que estava atrofiada - constatou - mas foi muito boa minha visita aqui, pois agora que realmente consegui ver a imperfeição e que sou e sempre fui perfeito, já sei muito bem o que fazer.
- E podemos saber o que o amigo resolveu fazer a partir de agora - perguntou João.
- Claro! Primeiro pedir perdão a Deus pelas minhas blasfêmias, perder a mania de querer me sobressair e recuperar o tempo que perdi dizendo bobagens sobre perfeição, pois era a única coisa que fazia. E a partir de hoje, vou sair pregando esta lição que aqui aprendi, e tentar ajudar aqueles que realmente precisam de ajuda. Agora eu sei que nunca fui capaz de olhar para trás e que sofria tanto com o sucesso dos outros que me tornei incapaz de construir o meu próprio. Agora não quero mais tomar seu tempo, amigo, sei que é uma pessoa muito ocupada. Muito obrigado e adeus.
Abel acordou assustado. Estava sentado sob aquela árvore. Olhou em volta para ver se encontrava o velho, mas tudo fora um sonho, mesmo que não lembrasse de ter dormido. Sonho ou não, estava muito real em sua mente e cumpriria a promessa que fizera, pois sabia que aquelas pessoas que vira na fila da fonte eram apenas parte de um sonho, mas que nosso mundo estava cheio delas e que precisavam de ajuda.
Abel voltou a sua cidade. Uma semana passou e ninguém o reconhecia. Tempos depois ele era visto com uma multidão a sua volta enquanto ele pregava a Palavra de Deus, sem "ter igreja" nem cobrava nada, pelo contrário, ajudava no que podia as pessoas necessitadas. Nunca esqueceu o velho do sonho (não tinha certeza, mas achava que sabia quem era).